O Acorde

O Acorde

            Tem modas que matam. Elas sujam de sangue quem as empunha e quem delas é vítima. Modismos, caprichos: o recheio de gente vazia… Esses que parecem um pastel de vento, que jogaram no lixo o pensamento… Avacalharam o estudo!

            Assassinas modas!

            E não me refiro aos autoritários de fancaria! Esses acusam tudo de que não gostam de fascismo, mas quando o real aparece, calam-se… Brigam, polarizados, mas não entendem que os maiores prejudicados são eles mesmos: perdem a beleza da diversidade e caem no ridículo da zombaria popular.

            Essas pessoas, que acham feio tudo o que não é espelho, nunca sentirão a sublime poesia dos versos da “Resposta ao Tempo”, de Aldir Blanc, cantados pela insuperável voz da Nana Caymmi…

O modismo aniquilador tem nome: antissemitismo!

Chaga humana que ainda nos atormenta. É aquela mácula que, desde os tempos de Hamman, e talvez até antes, impede nosso total desenvolvimento. O preconceito é como a falta de luz solar, que facilita o nascimento dos mofos horrendos e fedidos, e impede o crescimento saudável das folhas, flores e frutos…

Teve um tempo em que eu ouvia mais as composições de Richard Wagner. Daniel Barenboim e Zubim Metha haviam me convencido de que a força e a beleza daqueles acordes só produziriam dor e sofrimento se ouvidos, mas nunca escutados, pelos torpes e sujos.

Hoje, após estudar mais, sei que eles constituíram as bases funestas sobre as quais foram erguidos os moedores de carne que vitimaram imolaram milhões de pessoas nos falsos e fétidos altares de Moloch: a exclusão incompreensiva!

Não ouço mais. Até mesmo porque obedece quem tem juízo… Se a Ana Rosa me pegasse numa dessas, eu sentiria os espinhos que se guardam sob o olhar de cuidado, carinho e ternura…

Wagner era antissemita! Talvez o fosse pela modinha da época, mas a verdade é que era. A gente nunca vai saber se ele era um ignorante convicto, ou se era só um covarde e fraco, que cedeu às pressões para participar das rodas de influência e vender suas obras…

Mas, do mesmo jeito que a música wagneriana pode ser ouvida pelos ímpios monstros que desprezam a civilização, ela também pode ser escutada pelos puros de alma, construtores de um mundo para todos! Juntos…

Na abertura da ópera “Tristão e Isolda” tem um acorde dissonante, o chamado “acorde de Tristão”, que fica, digamos, em aberto, esperando uma resolução sonora. Algo como se o acorde de Tristão chamasse por um outro som… Só que esse nunca vem…

Imagine que a gente esteja passando uma tarde em Itapoã… De repente, naquele descanso vazio, chega uma cachaça de rolha… A gente já espera uma porção, um violão… É essa espera que o acorde parece criar.

“A música vai continuar por aqui”, pensamos… Mas ela nos surpreende, deixa aquela ponta solta, e continua por outras trilhas. É uma música indomada, mas ainda enjaulada…

Dizem os músicos e entendidos que esse acorde abriu as cortinas para a grande revolução estética da música: o dodecafonismo. Ainda não é dodecafônica, mas ela foi abrindo a clareira em que a nova tonalidade armaria acampamento.

Se a gente ouvir a ópera com atenção vai escutar esse acorde sem fim desde a abertura até o fim: ele sempre estará lá. Meio sem forma, sem eira nem beira. Só no finalzinho, umas cinco horas depois, ele é solucionado…

Se um ouvido límpido e puro o escutar, dirá que ele é a imagem musical da resistência… Aquela que passa por torturas, obstáculos, dificuldades, mas no fim triunfa deslumbrante, e, com seu manto iluminado, constrói um novo destino para toda a Humanidade!

Resistência! Mais que o ovo, fonte de nutrientes que, cozido, se torna sólido e único… Como as cerâmicas de Cunha, que ganham solidez, cores e formas inéditas após passar pelo fogo!

Wagner era antissemita! A música wagneriana não precisa ser! Só depende de nós! Juntos!

André Naves

Defensor Público Federal, especialista em Direitos Humanos, Inclusão Social e Economia Política. Escritor e Comendador Cultural.

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