Sinhá

Sinhá

Sinhá

            Na corte da N´gola Nzinga, nas terras africanas do Dongo, havia um griô cego e já idoso… Ele era conhecido por conversar com a terra, com as águas, com os bichos e as plantas.

Os conselhos dele valiam como bananas: nada era mais importante para a vida que o alimento… Nada enchia mais a alma que a doçura…

            Mas, no fim, ele só se ria… “Quem sô eu pra plantá novas ideia na Rainha? Quem sô eu pra indicar novos rumo pro Dongo? Eu só enxergo a mata, escuto os bicho, sinto as planta…”.

            “Sabe o vento frisando o chão? O perfume dele? Essa é a cantoria! Ele faz uma cantiga que m´ensina e alegra. É aí que eu canto! Tudo que eu repito, é a Natureza que me diz… O que plantá… Quando colhê… Onde caçá… Que época pescá… Tudo!”

            “Eu não falo nada… Me basta escutá!”

            De tão sábio que era, carregava a capa do leopardo. O principal griô de todo o Dongo! A rainha Nzinga se consultava bastante com ele, tanto que o escolheu como tutor de seu filho mais velho…

“O príncipe tem de ser um guerreiro corajoso, mas também tem de dar conta de falar o idioma do rio, a língua do mar, o dialeto animal e a toada vegetal!… Não é só na guerra que o Dongo enrica! Governar também é cevar o povo!”

Mas o príncipe guerreiro era bem diferente do ancião cego… Impulsivo, temerário e inconsequente, ele sentia, nas divagações de seu mentor, uma imensa perda de tempo! “O leão ruge e a floresta cala!”, gostava de dizer!

Desprezava toda forma de escuta, de diálogo. Ele era como um trovão ou uma tempestade! Ria da miséria e pisava na humildade! O velho griô se sentia responsável por tanta falta de caráter… Decepcionado, triste!

Assim como os leopardos idosos, resolveu se retirar. Ir para o coração da mãe África… Seguir o rumo do rio, ouvir os pássaros, conversar com as feras… Sua mansidão seria o escudo de que precisava. Seu sorriso, sua espada!

Acontece que por mais insensível que fosse o sucessor de Nzinga, ele sentia enorme amor e respeito pelo sábio que o criara. Sabendo que o mesmo carvão é um diamante, antes de partir o ancião ofertou um amuleto para o guerreiro: uma figa, feita com o marfim mais puro trazido pelos mercadores do norte do Congo…

Aquela figa, guardada como um dos maiores tesouros de todo o Dongo, era a última lição que o sábio griô deixava: um convite para o guerreiro baixar as armas e elevar a alma para ouvir os sons populares…

Um convite para perseguir novos encantos, novas lições… Para subir mais os degraus dessa escada que nunca há de terminar: a ascensão do eterno aprendizado!

Numa refrega com um grupo de piratas holandeses, o jovem e incauto guerreiro acabou caindo prisioneiro, tendo sido vendido para mercadores portugueses, e trazido, sob grilhões, ao Brasil.

“Seu porte valerá vários contos no Valongo!” Mesmo em meio a tamanho sofrimento, ele conseguiu manter, pendurado em um cordão à volta de seu pescoço, o presente que ganhara… A tripulação do tumbeiro morria de medo de mandinga dos negros!

2 séculos voaram como baratas em meio a tanta sujeira.

No dia 4 de outubro de 1836, enquanto o povo se divertia com os festejos de São Francisco de Assis, era deixado, na porta de Mestre Amaro, um negro recém-nascido, apenas com um cordão em volta do pescocinho, segurando uma figa de marfim tão branco que amarelava…

Assustado, o Mestre olhou em volta… Tão escuro… Não se vê nem a alma… Pegou o menino chorão, o levou para sua tapera, esquentou um pouco de leite com rapadura e tentou alimentar a criança.

Logo em seguida, um pensamento começou a incomodar sua tranquilidade… O que faria? Seu rosto ficou ainda mais sério que de costume. Ele duvidava da própria ideia…

Pegou o chapéu e foi para o Engenho. Via, ainda, o fogo na pracinha, ouvia a sanfona, e sabia que festa ia longe! Aquela gente gostava de festa até o Sol raiá! Sorriu por poucos instantes…

Chegou no Engenho. Ao lado, o casarão do Coronel Lula. Bateu na porta… Três pancadas secas…

Pá! Pá! Pá!

Nada…

Olhou para o menino. Tudo parecia ir bem… Ele era mestre na doce arte de fazer o açúcar… Não entendia nada de bebês! E o pior é que corria na vila o boato que ele era lobisomem!

Ficou furioso! Era tratado como um excomungado por todos! Gentalha ignorante! Esmurrou a porta…

PÁ! PÁ! PÁ!

Ouviu, baixinho, alguém gritar: “Já vai!”.

Abriram a porta. Era a mucama do Coronel. Apavorada com a visão do Mestre, ela empalideceu… “Num faiz mal cum nóis, seu Lobo…”

Enfurecido, ele deu tapa nela e gritou: “Lobisôme é a égua! Vai chama o Coroné! Anda!”

“Num posso! A Sinhá D. Maria vai ganhá nenê! Tá todo mundo lá esperando a moça!”

“Diacho, de uma hora pra outra todo mundo resolveu ficá de barriga”, pensou, resmungando, o Mestre Amaro. Ele entregou a criança para a jovem e tímida mucama e contou o acontecido. Ele não podia criar ninguém. Já era velho e viúvo!

Olhou pro menino uma última vez e, sem nem falar com a menina, saiu…

“Tenho mais que fazê! Já não me falta aperreio, ainda ganho essa presepada! Só comigo!”

Nasceu! Como se rezava por São Francisco de Assis, à sinhazinha deram o nome de Francisca…

No dia seguinte, a mucaminha contou as novidades. Falou tudo, tim-tim por tim-tim. O Coronel Lula ficou meio ressabiado, mas D. Maria sentiu que era uma Luz do Criador…

Um recém-nascido que aparece justo no dia de São Francisco, na madrugada do dia de São Benedito, o religioso negro! Só podia ser um sinal! “Ele vai ser criado junto com a nossa Francisquinha! Francisco e Francisca, os gêmeos da alma!”

Coronel retrucou na hora: “Criá essa meninada toda junta num vai prestá! Ele vai tê a educação dos padre, virá um negro d´estima, mas vai mora lá na senzala…”.

E a roda da vida foi circulando lá no Engenho Fogo Morto. As quermesses, as missas e a moenda eram como um calendário, que indica os dias… Assim, quase sem perceber, que os anos iam passando…

A educação jesuíta era boa, mas Francisco aprendia, de verdade, observando. Sentia o perfume do melaço, tinha prazer em esperar a cana dar caldo, lia a poesia da terra e sabia cantar com os animais…

Francisca? Ele se derretia quando a via, aos domingos, na missa. Chorava em iorubá, mas rezava por Jesus. Era assim que ia levando. Ela, infelizmente, parecia mais com o pai: quase não lhe dirigia a palavra e seu olhar, tão belo e azul, só enxergava o que reluz!

Um dia, encantado com uma sabiá, Francisco foi seguindo as sendas do arvoredo até chegar numa cachoeira. Tomou um susto ao ver Francisca lá se banhando. Encantado, se quedou em paralisia…

Nunca vira tamanha beleza. Os olhos tão azuis, como se fossem incapazes de fazer mal… A pele branca, como a figa de marfim que ele trazia no peito. Os cabelos dourados como os de sinhá d. Maria… E… Molhada, a túnica que a cobria se colava ao corpo, delineando os traços de uma sinhá ainda moça mas já crescida…

Claro que ele já tinha visto outras mulheres… Lá na senzala, ele sempre espiava. A mucaminha que o recebeu, alguns anos mais velha, já tinha, inclusive, ensinado alguns segredos do amor…

Mas aquela visão era completamente diferente! Ela, a donzela inalcançável, a beleza fria, o mármore gélido… Era ela que tomava banho ali! Era ela que tomava corpo de mulher… Era ela que sorria como um daqueles anjos da igreja…

ELA!

Ele sentiu algumas respostas em seu corpo… Ele também já não era o mesmo…

Foi nesse instante que observou uma serpente se avizinhando da doce sinhá… Resolveu agir.

SINHÁ!

Pulou na água e espantou a víbora que atrapalhara o mais sublime idílio já cantado por uma sabiá…

Ela gritou assustada! Francisco a estava espionando? Ela precisava mandá-lo para o tronco, talhar seu corpo… No entanto, hipnotizada pela gratidão por sua vida, e curiosa com o que via, se acalmou…

Ele também estava todo molhado, e as calças de linho cru faziam-se coladas e algo transparentes… A sinhá era uma moça humana… Francisco explicou tudo! Sabiá! Arvoredo! Serpente!

Ela, então, o perdoou. Aquele seria o segredo dos dois, mas que ele jamais voltasse àquela cachoeira… Um marco na vida tão monótona dos dois fora estabelecido: a partir de então trocavam olhares nas missas e palavras nas quermesses.

O melaço da cana que escorria da moenda parecia estar, aos poucos, se apoderando daquele jovem casal…Um amor doce, melado, brilhante… Um amor cor de terra, mulato como o Brasil! Um amor que ia esquentando até borbulhar!

E, assim como a vida que andava devagar por aquelas bandas, todo o sentimento dos dois, Francisco e Sinhá, foi evoluindo e florescendo… De olhares para palavras… De palavras para toques… De toques para encontros…

E eles eram tão jovens que, ainda bem, ainda viviam com a imprudência da pouca idade. Assim como quem faz uma figa não consegue empunhar uma espada, é livre de armas e de preconceitos, quem é dócil na idade ainda não consegue enxergar toda a maliciosa realidade.

D. Maria, a sinhá-dona, já tinha reparado em tantas mensagens. Mandou chamar a sinhá-moça Francisca e foi seca: “Você irá para o convento Carmelita, em Salvador, amanhã”.

Desesperada, Francisca correu sem rumo… As lágrimas escorriam desde aqueles azuis olhos por suas bochechas de Carrara… Como iria viver sem Francisco? O que faria? De onde emanaria tamanha doçura? Quem conversaria com os pássaros? Quam saberia da terra e das plantas? Qual o motivo de tamanha crueldade?

Correu e procurou… Procurou… O encontrou lá no arvoredo, conversando com os passarinhos. Seu pai, o Coronel, já tinha contratado jagunços para darem cabo daquele “negrinho abusado”. Era preciso correr…

Não! Não fizemos nada de errado! Eu não vou fugir!

No meio das árvores, longe de tanta confusão, ele mirou a figa de marfim. Branca como alabastro… Como a pele de Sinhá! Começou a chorar em iorubá gemendo: “Não vou!”

Sinhá, então, tomou coragem e fez a voz dela ecoar a suave mensagem que a brisa trazia: “Pergunte para o seu Orixá! O amor só é bom se doer! Vai! Vai! Vai!”… “Não vou!”…

Quando os jagunços chegaram, encontraram Sinhá catatônica, com a figa na mão. “E o negro? Covarde! Fez mal pra menina e fugiu!” “Ele não fugiu… Agora, ele é o canto do sabiá, o sumo do caju!”

Anestesiada, Francisquinha foi levada para o convento em Salvador… Tinha delírios constantes com o arvoredo, o caju, a cachoeira e as sabiás… Diziam que tinha sido mandinga de preto que enfeitiçou Sinhá…

Pouco depois foi ela, também, voar no canto das sabiás… Se embevecer no suco do caju!

ANDRÉ NAVES

Especialista em Direitos Humanos e Sociais, Inclusão Social e Economia Política.

Defensor Público Federal. Escritor e Professor.

Colunista de diversas mídias de comunicação.

Conselheiro do Chaverim, grupo de assistência às pessoas com Deficiência Intelectual, além de diversas instituições voltadas à Inclusão Social.

Membro do LeCulam, da FISESP (Grupo de Inclusão das Pessoas com Deficiência da Federação Israelita de São Paulo).

Embaixador do Instituto FEFIG, para a promoção da Educação.

Membro do LIDE – Inclusão.

Comendador Cultural.

Autor do livro “Caminho – A Beleza é Enxergar”.

www.andrenaves.com

Instagram: @andrenaves.def

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