Ressurreição

Ressurreição

Amanheceu um dia tão perfeito que sua imperfeição mostrou as garras. O Sol que brilhava, a temperatura agradável, a leve brisa, convidavam ao sorriso poético daquela terça-feira.

            Era uma terça como tantas outras paulistanas: um dia que parecia só existir para gritar que os estereótipos não existem. Quando a gente toma os atalhos dos clichês, sempre caímos em um beco sem saída lamacento.

Aliás, é melhor a longa e árdua trilha do entendimento que desemboca em clareiras ensolaradas e certas que a senda dos falsos atalhos, curta e enganosa como um preconceito, que nos leva a atoleiros fedorentos e escuros…

É melhor o caminho longo e certo que o atalho curto e que esconde armadilhas!

O dia estava assim: lindo como só São Paulo!

Eu que não estava…

Não era nada físico, palpável. Meu nariz não escorria, minha cabeça não doía, meu intestino funcionava bem… Entretanto, minha vontade parece ter vestido uma camisa listrada e saído por aí…

A cama não saía de mim! Deitado, despedaçado, dolorido sem dor nenhuma… Uma condição muito comum. Um lembrete constante e embalado em um laço bonito e cheiroso dos meus fracassos.

No fim, eu sou humano… Demasiado humano!

Como dizem lá em Jacareí: “Vocês veem as pingas que eu tomo, mas não os tombos que eu levo…”

No fim, eu sou isso… Na cama com pijama! E a cada compromisso desmarcado era uma nova avalanche a despencar sobre mim, me enterrando, ainda mais, nas profundezas desanimadas e nada líricas.

O meu interior franzia o cenho para mim mesmo: eu era o condenado de minhas reflexões, o miserável da alma. Sair era plantar novas sementes, é empreender a viagem da convivência, é enxergar! Ficar é jogar tudo no lixo!

Mas… Eu não vou a lugar nenhum!

NENHUM!

Nem que me queimem nas fogueiras inquisitoriais, não irei! Tudo é maçada, diria meu amigo Zé, que tinha, uns anos antes, ido viver no mundo amarelo das saudades e dos sonhos…

Desde aquele dia, não vi mais o João… Tomamos uma cachaça juntos em homenagem ao portuga! Tinha morrido na Espanha, parece. Bom para quem nascera em Portugal e acreditava piamente na União Ibérica!

A lembrança plantou um sorriso em mim. Já não me sinto mais tão atolado no brejo entediante das condenações. Ainda estou preso. Enterrado, não!

Toca o telefone… Celular não rima com quarto. Até eu tomar coragem para ir atender na sala, já se vão três toques… No visor vejo UBALDO. O que será que o João quer comigo? Seria engano? Será que um trombadinha surrupiou o celular dele e quer me passar um golpe?

Ele mesmo que falava. Foi das últimas vezes que ouvi sua voz. Estava em São Paulo para receber mais um daqueles prêmios que serviam só para acumular poeira e apimentar o narciso de cada um…

Fazia questão de conhecer meu escritório… Assim que ele falava: “escritório”. Queria saber onde eu comia uma maravilhosa pizza paulistana. Queria entender por onde minha boca salivava.

Eu até tentei me esquivar, mas o baiano era arretado e o meu algoz interior nunca me perdoaria por tamanha oportunidade perdida. Dizem que quando o cavalo passa arriado em nossa frente, devemos ter a coragem de pular em cima e cavalgar…

A vida quer da gente é coragem, já dizia o Rosa dos Campos Gerais…

Lá na esquina em que a Deusa Diana se encontra com o Guerreiro Caiubí, nos limites dos vôos das Perdizes que se transformam numa Pompeia, lírica e incandescente, ficava a melhor pizzaria de São Paulo… Pizza e literatura! Shakespeare napolitano… Paulistano!

Pequena, aconchegante e despretensiosa. Lá as belezas ilusórias e efêmeras cediam lugar ao sabor.

Quando o João chegou e me viu naquela mesinha de latão posicionada na calçada foi a vez dele rir e falar: “Isso que é escritório!”

Puxa, o Zé faz tanta falta, continuou… Ele gostava muito do que você mandava pra gente. Comentava bastante, daquele jeito carrancudo e lusitano, que “o menino era uma dessas flores do Lácio que a gente deve cultivar…”.

Pra ele, a escrita era um trabalho como o do pedreiro. Escrever é construir. Todo dia, não importa a vontade ou o misticismo da inspiração, a gente tem de sentar e escrever. Não importa nada. Só escrever…

Disciplina na escrita, é pra isso que a vida chamou a gente! Olha o tamanho da nobreza: somos os operários das letras!

OPERÁRIOS!

Mas… Operários devem beber… Vamos de que?

Chamei o Luiz, o dono daquela preciosidade, e pedi uma porção de massinha assada pra gente beliscar, uma garrafa de Peverella e duas doses de pinga!

Frisei a palavra pinga… Quem quer ser popular não pode ser esnobe a ponto de só tomar cachaça. A pinga é a cachaça do povo… Do operariado! Peverella é um vinho brasileiro, delicioso e sem tanto fru-fru… Fora que tem um rótulo tão lindo que deixa tudo mais gostoso…

Meu conhecimento de vinhos é tão profundo quanto os rótulos! Só bebo coisa bela!

O Luiz parecia ser um dos poucos a reconhecer o João… É que ele é fotógrafo… Faz poesia com imagens! Agora, o lirismo dele está nas redondas…

Quando o Luiz chegou enchendo a mesinha, o João voltou a falar do Zé: Sabe o Borges? O Zé adorava provocar, chamando-o de “o sem-Nobel”. Pois bem, ele gostava de dizer que temos de nos orgulhar de cada livro lido, e nunca devemos ter orgulho de nada escrito!

É que segundo ele, contava o Zé, as histórias que a gente escreve, tudo o que é escrito, vai tomando vida própria. Escorre por caminhos que a gente nunca havia pensado! É a história que escreve o escritor!

Pensa bem… Eu era um João, anônimo e ninguém, antes das histórias escritas. Foram elas que me colocaram no mapa… Mais ninguém! E a cada linha, tudo que eu escrevia ia correndo por caminhos impensados… No fim, ela se escrevia quase que sozinha, e eu ficava diferente, ganhava novas palavras, ideias, pensamentos…

O escritor não escreve! Ele é escrito!

O portuga adorava a historinha do caleidoscópio. É a nossa mão que gira o tubo, mas as imagens acabam se montando por si mesmas… E será que depois de enxergar as imagens nós somos os mesmos? Será que contaríamos as mesmas coisas?

No fim, Mercutio daria uma risada e falaria: “Dai-me uma cobertura para o rosto. Em cima de uma máscara ponho outra. Que me importa que o olhar curioso possa perceber a feiúra?”…

André Naves.:

Escritor; Defensor Público Federal, especialista em Direitos Humanos, Inclusão Social e Economia Política e Comendador Cultural.

Crédito da Gravura: Duncan 1890

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