Gavroche
Durante mais de 30 anos Victor Hugo experimentou um processo transformador. Daqueles mecanismos que metamorfoseiam o fubá, junto a outros ingredientes, em um delicioso e cheiroso bolo, pronto para animar, encher de gostosura a vida de quem sente o cheiro ou o come, e estimular as prosas…
Um bolo de fubá nunca está pronto enquanto não arranca sorrisos, floresce saudades e determina uma prosa! Quem come essa delícia do milho em silêncio está desperdiçando a melhor parte dele…
Acho que o gosto do bolo sai do palavrório da gente!
Mas… Desde que começou a pensar em um romance que tratasse das misérias humanas, até a publicação d´Os Miseráveis, foram mais de 30 anos em que a vida dele tomou caminhos tão inusitados e diferentes que até respondem a filosófica questão: “Será que os romances escrevem os autores, ou será que os autores escrevem os romances?”.
Exílio, autoexílio, busca por Justiça… Victor Hugo, uma das primeiras almas a enxergar que a deficiência nunca esteve no corcunda Quasímodo, mas sim na organização de uma sociedade preconceituosa e excludente que expulsava a bela cigana e bailarina Esmeralda, estava agora percorrendo a arriscada jornada em busca de si mesmo…
A amarga história das misérias gentis ia sendo escrita em meio a mudanças essenciais na maneira como Victor Hugo se posicionava no mundo. Não mais como um literato agridoce, mas como um anterior Émile Zola, que usava sua pena para acusar e, com isso, transformar a realidade.
O cheiro do bolo desperta o sorriso em quem está passando… De certa maneira, muda a vida da pessoa. As mudanças sutis e pequeninas acabam em grandes revoluções. Uma andorinha só não faz verão, mas sem essa andorinha, o verão nunca será feito!
Enquanto escrevia a história das Barricadas de Paris e o assassinato brutal do jovem menino Gavroche, tão indômito quanto irreverente, o escritor acabou como se tivesse levado uma pancada…
As tropas vestidas de Lei e Ordem tinham brutalizado as esperanças populares… O canto da gente ficou mudo. O bolo de fubá perdeu seu perfume. A poesia ficara silente de todo o lirismo…
Gavroche era uma criança… Só um sonho doce e infantil! A Justiça e a Liberdade também têm as cores da tenra idade… A Utopia é inocente, ingênua e bela!
Gavroche é a Utopia! Quando os soldados o aniquilam, matam um pedacinho de cada um de nós. Mas ele também é semente, é fagulha, é raio de Sol! E assim como após o inverno desperta a primavera, após as trevas o Sol nascerá!
A sorrir, cantaria Cartola…
E assim como um castelo de areia que se desintegra ao sabor das ondas do mar, para depois ser reconstruído, Victor Hugo colocou o romance na gaveta… Passou um bom tempo só, numa ilha no Canal da Mancha…
Às vezes as ideias, para despertar com força e vigor, precisam de um pouco daquele silêncio que só pode ocorrer nos encontros consigo mesmo. Só o diálogo interior e mudo pode, por vezes, nos mostrar as soluções que teimamos em não enxergar…
De lá, mudou-se para Waterloo. Precisava viver onde Napoleão, aquele tirano que inspirara multidões para, depois, roubar delas os sonhos e a Esperança, fora derrotado pela velha ordem. Era muito difícil!
Napoleão era um Gavroche que, de tanto comer melado acabou por se lambuzar… Ele, por fim, virou o abismo contra o que tanto lutara! Napoleão encarnava a velha ordem… De certa maneira, ele representava tudo o que destruíra Gavroche!
Napoleão, o Gavroche despedaçado que impossibilitara a Esperança! Um Gavroche torto e assassino!
A partir daquele dia, Victor Hugo, em Waterloo, desengavetou o romance e escreveu em seu diário pessoal:
“A partir daqui o aristocrata sai de cena. Minha pena estará sempre ao lado de Gavroche, em defesa dos trabalhadores e da Justiça, nas barricadas da existência Humana”.
Anos depois, após longo trabalho e dedicação disciplinada, era publicado “Os Miseráveis”.
Eu despertei para a necessidade de estar ao lado de Gavroche e dos excluídos pela sociedade ainda criança. Não quero rivalizar com Victor Hugo! Pelo contrário! A leitura d´Os Miseráveis, ainda na juventude, inspirou minha alma, e muitas outras, a optar pelas barricadas!
Só quero dizer que eu, ainda criança leitosa, sentia o cheiro do chá mate, do bolo de banana, e ouvia a Sinfonia Paulistana, tema de abertura do jornal da manhã na rádio Jovem Pan, na casa da minha avó…
Era um apartamento comum, nada demais, lá em Jacareí… Mansão do Vale… Quando o elevador chegava, antes de minha avó abrir a porta, já eram nítidos os perfumes e sons!
Nunca esquecerei do mate pela manhã e da erva-doce ao cair da tarde! Aquele pãozinho com manteiga e o bolo de banana… Tinha o de fubá também!
Gostava de um café tão fraco quanto um chá… Eu me lembro daquela água meio caramelada… Nem parecia que já morava em Jacareí desde os tempos do guaraná com rolha…
Era tão engraçado uma música cantando “Vambora, vambora! Tá na hora, vambora!” para uma mineira lá de Nova Ponte, que chegara em Jacareí com minha mãe ainda na infância…
Uma mineira apressada! Mas… Na verdade, a pressa não tinha vez. Ela era veloz, mas nunca teve pressa… “A vida não é gincana!”.
E o que ela gostava de trabalhar num tá escrito!
Não que ela trabalhasse “pra fora”…
Ela trabalhava com Gavroche, na construção da Justiça, na realização da Esperança! Era uma dessas abelhinhas que vive de trabalhar, mas só descansa quando a colmeia toda já está nutrida… De corpo e alma!
Sabia que, no fim, cuidar dos outros é o melhor autocuidado. Só no diálogo a gente se encontra!
Ela sempre ia no “Centro” cuidar do próprio espírito como quem pratica a gostosa arte da jardinagem… Com isso as rosas sempre estavam lá, embelezando tudo e atrainda mais abelhas…
Serviço!
Abelinha!
Rosinha!
André Naves.:
Escritor;
Defensor Público Federal, especialista em Direitos Humanos, Inclusão Social e Economia Política.
Comendador Cultural.