É preciso Sonhar!
Minha vida é tipo um relógio. Sabe desses, de ponteiro, já precisando de corda? Devagar… Quase parando… Contam que lá em Konigsberg a turma acertava o relógio pela rotina do Kant. Se algum incauto quiser acertar os ponteiros de acordo com a minha rotina vai dar com os burros n´água, né?
Não que eu não goste dela. Pelo contrário! Aprecio muito a segurança, a previsibilidade e o conforto de um dia-a-dia certo. Eu até faço agenda. Marco tudo certinho nela. Faço planos. Mas é como dizem, né? Quando fazemos planos, D´us ri!
Sabiam que meu irmão é monge budista? Ele sempre fala que devemos ser flexíveis igual o bambuzal, que se dobra e acaba domando a vontade da ventania numa dança de beleza suprema. Bambu não é inflexível igual o violento jatobá, que, apesar de imponente e vigoroso, acaba sendo violentado pela tempestade…
D´us deve olhar para o jatobá, todo cheio de planos e certezas, e ri. Já para o bambu, deve mandar um arco-íris depois da chuva brava: esse Me entendeu! O planejamento deve existir, mas a flexibilidade para se adaptar aos ventos do novo, também!
Então… Como eu tava falando… A Ana Rosa me leva pra fazer compras toda sexta de manhã… Na verdade, às vezes é na quarta, às vezes, na hora do almoço… Lembra do bambu? Então? A gente também dança e doma o vento aqui: “Sim Senhora!”. É sempre no Sonda! Toda vez. Aquele do SESC Pompeia, conhece? Às vezes é naquele do Parque da Água Branca…
Entrando no mercado tem uma lotérica. Sempre cheia. Fila. Cada um querendo sua fezinha. A Mega nem precisa ser a da Virada. Nem acumulada precisa tá. Sempre cheia. Fila. Eu até acho que ninguém é louco de acreditar, de verdade mesmo, que vai ganhar. Mas cada jogo é um sonho.
Ninguém tá, na real mesmo, apostando nada. Tá todo mundo comprando um tostãozinho de sonho…
Cada papeletinha daquela preenchida é um ato de diálogo com o Divino. Ali, naquela fila, de conversas e esperanças divididas, as grandes Leisse manifestam de um jeito curioso. Nada a ver com a lei da gravidade ou da termodinâmica, mas com a lei espiritual da semeadura e da colheita, da obediência e da desobediência.
A gente é ensinado que a bênção vem da obediência ao trabalho duro, à rotina, ao esforço diário. Será mesmo que é isso? A gente não passa de mascate das boas ações? E a aposta? Seria ela uma pequena desobediência, um atalho para escapar da lógica da semeadura? Ou seria, ao contrário, o ato mais profundo de obediência a uma lei ainda maior: a de que somos seres de Esperança, Sonho e Partilha?
É que na fila toda vez tem alguém que fala da casa que vai dar pra mãe, da viagem pra Disney que vai levar a filha, do churrasco que vai fazer quando ganhar… É bem legal!
Basta dar uma olhada nos rostos. É a responsabilidade social. Sabe aquele senhor de mãos calejadas, será que ele sonha com um iate? Duvido… Acho que ele sonha, de verdade mesmo, em pagar o tratamento da esposa, em dar uma casa para a filha. A moça de uniforme sonha em abrir uma creche na vila…
Teve uma vez que eu tava em Jacareí. Lá também. Supermercado Shibata, lotérica, a coisa toda… Era época da Mega da Virada. Minha mãe pediu pra que a Ana Rosa e eu ficássemos na fila enquanto ela fazia compra. Papo vai, papo vem, fui convidado para o churrasco da vitória lá em São Silvestre. Eu nunca tinha visto o cara na vida!
O sonho do prêmio é a expressão ética mais profunda da Humanidade que foi feita à imagem e semelhança do Altíssimo: o desejo de cuidar. A gente sonha em ganhar para, finalmente, ter a liberdade de ser responsável por quem amamos, pela nossa comunidade.
É a busca da liberdade para cuidar, não a liberdade de não se importar. É o sonho de ser o bambu que, forte em sua flexibilidade, protege os brotos da ventania.
O sonho da loteria é a Humanidade no Sagrado… Buscamos a liberdade da necessidade, mas o que faríamos com ela? Construiríamos muros mais altos ou pontes mais largas? O caipira, com aquela sabedoria da terra, diria que “dinheiro na mão é vendaval”. Pode tanto erguer um celeiro quanto destelhar uma casa.
A gente tem de escolher… SER ESCOLHIDO!
E eu ainda acho que cada apostador aposta, mesmo que sem saber, na bondade do seu próprio coração. É a fé de que, se a bênção vier, ele saberá ser a bênção para outros. Ninguém tá ali só tentando a sorte. Tá todo mundo ensaiando para o Milagre.
É que a bênção não é o prêmio! É a coragem de sonhar! É a coragem de partilhar! Mas sempre tem o outro lado da moeda, o lado escuro da Lua: uns chamam de maldição… E qual é? Não é perder a Mega da Virada! É viver num mundo mesquinho e solitário… Um mundo que te faz ter certeza que uma aposta é a única saída.
Meu irmão, o monge, ia dizer verdadeira liberdade é não precisar do prêmio, é encontrar paz entendendo que ele vale nada… E ele tá certo!
Mas ao ver a senhora de cabelos brancos e chinelos havaianas na fila, acho que D’us vê o tamanho do universo que cabe num pedacinho de papel…
E talvez, só talvez, Ele esteja sonhando junto.
André Naves
Defensor Público Federal. Especialista em Direitos Humanos e Sociais e Inclusão Social. Comendador Cultural. Escritor e Professor.
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