Danado
Imaginar sempre foi minha brincadeira preferida. Fechava os olhos e via mundos. Agora, abro os olhos e invento futuros. “Nem a pau, Juvenal!”, digo quando a saudade do retrovisor tenta contar história antiga. Hoje, não.
Hoje é IMAGINAÇÃO! FUTURO!
Acordo, água no rosto, tênis. Descendo a Caraíbas. Tranquilo e calmo. Que tempo é esse? Dois anos? dez? quinze? Camiseta, shorts… Igual minhas crônicas: sem terno, sem gravata, mas com aquele nó entre as linhas.
A vitrine da livraria me chama. Ali, meu livro. Não tenho nem roupa pra isso… Mas, do nada, tô. Estufo o peito, dou um sorriso, fico um pouco ali namorando as gostosuras literárias, o cheiro de papel que faz brotar o sorriso.
Quando a alma desacelera, vem o puxão. É a guia.
Lembro: nesse meu amanhã, tenho um cachorro. O Danado. Golden Retriever. Fanfarrão, cara de quem ri, noção zero. Desastrado, afobado, meio bobão. Abana o rabo e faz vento de alegria. Toda vez quebra os vasos da Ana Rosa — água, flor, caco, tudo pro alto. O tapete? Tiramos. E ele nem nota, porque, no fundo, não é levado: é só livre. E liberdade, quando passa, levanta confete de festa.
Teve um dia, na casa da minha mãe — reparou? até no meu futuro tem passado —, que ele viu um gramado pela primeira vez. Foi direto pra lama como quem encontra a própria infância. Depois entrou na sala de TV, a família na Dança dos Famosos. Começou a se chacoalhar. Sabe, jeito de cachorro mesmo?
A sala virou um quadro borrado… Um Miró desastrado… O sorvete do meu sobrinho ficou com cobertura de brigadeiro de barro. Alguém ficou bravo? Acho que não. Talvez eu tenha ralhado um tiquinho, da boca pra fora, só pra manter a pose. Mas, quando tem Amor, o Perdão vem de fábrica.
Eu e Ana Rosa limpamos tudo. Fomos pro quintal. Mangueira aberta. A água cantando, lavando a lama, lavando tudo… Levando qualquer chateação. Água purifica. A gente também. E ali, ensopados e rindo, a gente enxergou: errar junto, rir junto, recomeçar junto. Nem precisa falar! É presença que grita!
Os anos passam. Outra manhã na Caraíbas. Outro livro na vitrine. Roupa diferente. Ana Rosa do lado. E o Danado… ah, o Danado agora apronta nas nuvens. Juro que vejo o rabo dele abanando lá, um vaso de luz se espatifando num éter desconhecido, um latido de quem ri escondido npôr do Sol…
O céu guarda umas delicadezas.
Meu olho enche d’água, mas é de alegria… Meio nostálgica, mas alegre! Eu encaro o fundo d’alma da minha Rosa e encontro nossa casa inteira ali, parede por parede, infância por infância, promessa por promessa. Sorrio. No colo dela, o Caramelo cochila. Ciclos. Sempre a vida. Sempre a gente. Sempre JUNTOS.
André Naves
Defensor Público Federal. Especialista em Direitos Humanos e Sociais e Inclusão Social. Comendador Cultural. Escritor e Professor.
www.andrenaves.com | Instagram: @andrenaves.def