A Democracia Desequilibrada
Há um desequilíbrio fundamental no coração da Democracia brasileira, uma falha estrutural que distorce a vontade popular e nos afasta da promessa de um governo do povo e para o povo. A crise não é silenciosa; ela grita em números.
O estado de São Paulo, lar de mais de 20% da população nacional, deveria, por uma lógica proporcional, ter mais de 111 deputados federais. No entanto, possui apenas 70. Essa não é uma mera questão matemática; é um silenciamento político que subtrai a força de milhões de vozes no debate nacional.
A quem serve esse desequilíbrio?
Ao mesmo tempo em que a conta da representatividade não fecha, um abismo de prioridades se aprofunda entre o Congresso e a realidade social. Pautas de enorme impacto para a inclusão e a dignidade humana, como a isenção de impostos para veículos não-adaptados — essencial para a autonomia de inúmeras pessoas com deficiência —, ou a isenção do Imposto de Renda para quem tem renda de até 5 salários mínimos, são relegadas ao esquecimento.
Em seu lugar, assistimos ao avanço célere de propostas como a “PEC da Blindagem”, exclusivamente preocupada em proteger a classe política e não o cidadão. Diante dessa inversão, a pergunta se torna inevitável: para quem nossos representantes governam? Onde, em meio a essas decisões, encontramos a essência da Democracia?
Muitos se apegam à ilusão de que o voto deve ser depositado na pessoa, e não no partido. É um mito conveniente, mas perigoso. No sistema político brasileiro, a influência ideológica e pragmática dos partidos é avassaladora. São eles que definem as agendas, impõem a disciplina e, em última instância, detêm o mandato.
Por melhores que sejam as intenções individuais de um parlamentar, ele frequentemente se vê obrigado a curvar-se à vontade partidária. Ignorar o partido ao escolher um candidato é como admirar a fachada de um prédio sem se importar com seus alicerces. Sabe o ditado popular “por fora, bela viola; por dentro, pão bolorento”?
Cedo ou tarde, a estrutura se impõe.
Essa desconexão se torna emblemática e audível em casos extremos. Vemos um deputado, eleito por São Paulo para defender os interesses de seu povo, dedicar seu tempo e energia em solo estrangeiro, articulando contra os próprios interesses do Brasil. Quando seu partido, em vez de questionar essa conduta, o prestigia com um cargo de liderança, a mensagem é clara: a agenda partidária e ideológica endossa o distanciamento do representante e de seu eleitorado.
A representação se esvai, transformada em um mandato a serviço de uma causa venenosa, e não da comunidade que o elegeu.
As consequências dessa distorção transcendem a política e atingem nossa capacidade de evoluir como nação. Como podemos ser criativos e inovadores se as vozes da diversidade, as perspectivas dos grupos minorizados e as necessidades das diferentes realidades brasileiras são sub-representadas no epicentro do poder?
A verdadeira inovação social não brota de gabinetes homogêneos, mas da escuta ativa e da pluralidade. Ao sufocarmos a representação justa, estamos sufocando as soluções que o Brasil real desesperadamente precisa.
A tarefa de recalibrar essa bússola quebrada é nossa, cidadãos. Não podemos terceirizar nossa responsabilidade. É preciso cobrar, fiscalizar e, acima de tudo, escolher com consciência, analisando não apenas o candidato, mas o projeto político e os valores do partido que ele representa.
A Esperança, como ensina a sabedoria popular, não é um sentimento passivo de espera; é uma ação deliberada. Que nossa justa indignação com o estado atual das coisas se transforme em uma poderosa e organizada ação social, capaz de realinhar a atuação parlamentar com a pulsante realidade brasileira.
André Naves
Defensor Público Federal. Especialista em Direitos Humanos e Sociais, Inclusão Social – FDUSP. Mestre em Economia Política – PUC/SP. Cientista Político – Hillsdale College. Doutor em Economia – Princeton University. Comendador Cultural. Escritor e Professor.
Conselheiro do Chaverim. Embaixador do Instituto FEFIG. Amigo da Turma do Jiló.
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