Dalila e Sansão

Dalila e Sansão

            Sentado. Cadeira numerada. Lima. É… Dalila ficou lá… Eu aqui! O show do início ia terminando. A barba coçava. O cabelo incomodava.

Ele pensou na promessa…

Só mais um sacrificiozinho até o Fla ser Tetra! E Dalila, como será que tava? Como ela pôde cometer tanta traição? Jogar fora meu manto da sorte? A camisa com que o maestro Júnior regeu aquela vitória…

            Tetra de novo…

            Lembrou daquela televisãozinha preto e branco de Caraguá… Era só chuvisco… Ele e o pai… Tantos anos… E a camisa da vitória… Era o tio que tava lá no Maraca! Ele tinha me dado no fim daquele ano…

            Saudades… Tempo bom!

            Ela casou comigo já sabendo da minha paixão pelo Fla! Doença rubro-negra! Não tinha o direito de ficar fula com minha promessa… Eram só uns mesezinhos até o Fla ser tetra! Que custava aceitar que eu não ia cortá o cabelo nem fazê a barba? E Lima então? Só um pulinho pra ver a final! Precisava ficá sem falá comigo? Quanta ignorância…

            Saudades… Queria ela ali, do lado!

            Mas a camisa era demais! Tá certo que nem cabia! Tava desbotada, desbeiçada mesmo. E daí? Precisava jogar? Agora, sem o amuleto, sem a minha força, é capaz do Fla perdê… Num quero nem vê…

            Apita o juiz! Jogo que começa!

***

Sentada. Sofá. TV ligada em Lima. É… Sansão tava lá… O show do início ia terminando. Será que tá tudo bem? Aquela barba? Aquele cabelo? Onde já se viu? Um juiz se portando assim! Que vergonha!

Ainda bem que o seu Manoá não tava mais aqui… Imagina ele vendo essa depravação do filho? Barbudo? Cabeludo? Falando tudo errado? Beberrão? Seu Manoá que era boa gente. Tá certo… Gostava do flamengo… Metade do Brasil também gosta. Normal…

Eu era pequenininha mas lembro do sacrifício que foi pra colocar o Sansão no Colégio Militar…

Que vergonha!

E agora ele tirou férias… Achei que ia ficar comigo… Era nosso aniversário! Todo mundo sabe! Até a dona Hazel trouxe um bolo pra gente! Mas ele foi pra Lima… Não devia estar aqui, do meu lado? Cadê o foco?

E aquela camisetinha? Pra que tanto drama? Tava toda desbotada… Desbeiçada… Como eu ia saber do valor sentimental? O menininho que ganhou tratou ela com tanto luxo, tanta emoção! Era um troféu! Ele vibrava! Deu tanto gosto de ver…

Sansão devia ter visto… Sansão… Saudades…

***

Num falam que a vida é uma caixa de chocolates? Tô aqui, sozinho, com a cabeça a mil, sabe? Dalila… ah, Dalila. Ela é a Luz! A minha Luz! Quando chega, ilumina tudo! Mais até que o gol do Danilo!

E agora, aqui… Sozinho… Presepada!

Tudo tem limite, sim. Não é só município, não! O sacrifício tem que ter propósito, objetivo. Não é um poço sem fundo. E o sagrado? Não era minha força, o meu poder. Tava no amor dela, na pureza, e eu troquei isso por uma superstição boba. Eu nunca devia ter gritado! Ter vindo! O amuleto era só um pedaço de pano…

Agora, aqui, nessa solidão que dói… Eu queria tá lá com ela…

O bom é que agora, aqui a gente começa a enxergar… A Luz, a verdadeira Luz, só aparece depois que a gente passa pelas trevas. É como se a gente precisasse de uma faxina interna, sabe? Tirar a poeira, o ego, as bobagens que a gente acumula. É preciso se esvaziar pra poder se encher de novo. E aí, a gente percebe a diferença entre ter a Luz e não ter… Entre a presença dela, o carinho, o riso, e esse vazio que me consome.

A bênção verdadeira não é ganhar tudo, não é ter a força de um touro. É ter paz, é ter amor, é ter a consciência tranquila. É saber que você fez o certo, mesmo que doa.

E a música… ah, a música do estádio, a torcida cantando, aquilo é um louvor a D’us, sim! É a alegria, a paixão, a união de milhares de corações batendo juntos. É a manifestação do divino no cotidiano, na paixão!

Eu não soube o tempo certo de cada coisa. O tempo de amar, o tempo de lutar, o tempo de refletir. Eu misturei tudo, e deu no que deu. Mas agora, a ficha caiu. Amanhã cedinho a cabeça vai tá raspada, a barba feita…

É hora de recomeçar, de mostrar que a força não tá no cabelo! A gente ganhou na raça, no coração!

***

Aeroporto lotado! Que ideia de gerico viajar nessa época!

Vozes, mala… Eu sabia que ela jamais ia tá lá… Mas não custa nada ter Esperança! Eu já era outro, sim. Sansão tá de volta pra sua Dalila! O cabelo já tava bem curto, quase raspado. A barba tinha sumido. Eu voltei mais… eu.

Nas mãos, flores. Um presentinho de saudades…

Inacreditável! Ela tava lá! Dalila. Minha Dalila! Linda! Mas ela não tava sozinha…

Do lado dela, em cima da mesinha, uma réplica da taça Libertadores e uma camisa retrô do Flamengo, autografada pelo Júnior. Eu não acreditava! Ela sabia. Ela sempre soube.

Nossos olhos dançaram e o mundo parou. Éramos só nós. E fui… Ela riu!

Perdão! Esperança! Tudo!

***

E foi ali, exatamente ali, que eu soube. Não é um raio nem um trovão! É energia! É a Força Divina, sim! Mas ela não tá lá fora, não tá em nenhum amuleto ou ídolo! Era a Força do Perdão. A força que brota quando dois corações se abrem, se reconhecem, se aceitam.

Era a centelha de D’us! Sempre ali, dentro de nós! Não no meu cabelo, não na taça, não na camisa autografada, mas na capacidade de amar, de errar e de recomeçar.

Nossos lábios se encontraram em um beijo que era promessa, que era recomeço, que era a certeza de que, juntos, a gente podia ser mais forte, mais sábio! A verdadeira força estava ali, no amor que renascia, purificado e eterno.

André Naves
Defensor Público Federal. Especialista em Direitos Humanos e Sociais, Inclusão Social – FDUSP. Mestre em Economia Política – PUC/SP. Cientista Político – Hillsdale College. Doutor em Economia – Princeton University. Comendador Cultural. Escritor e Professor.
www.andrenaves.com
Instagram: @andrenaves.def

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