Cuidado é Política de Estado

Cuidado é Política de Estado

A vida cotidiana revela, com nitidez brutal, onde ainda falhamos como país: mães que deixam o emprego por falta de creche; famílias que se desdobram para garantir acessibilidade a pessoas com deficiência; idosos que envelhecem sem rede de apoio; profissionais do cuidado invisibilizados e mal remunerados.

É nesse Brasil real que a Política Nacional do Cuidado deixa de ser pauta setorial e se afirma como eixo da Inclusão Social.

Não há atalho. A Constituição de 1988 desenhou um Estado de Bem-Estar Social — com SUS, SUAS e Educação como espinha dorsal — e nos entregou a bússola. Falta cumprir o traçado: organizar o cuidado como política de Estado, com governança, financiamento, qualidade e metas. Em síntese: concretizar Direitos Humanos e inclusão no cotidiano.

A palavra “cuidado” ainda é, por vezes, confundida com caridade. É um erro. Cuidado é infraestrutura social — e infraestrutura é base de produtividade. Onde há creche acessível e em tempo integral, cresce a participação feminina no trabalho, aumenta a renda das famílias e cai a pobreza infantil. Onde há atenção básica forte e reabilitação no SUS, reduzem-se internações evitáveis e custos futuros. Onde o SUAS integra serviços e renda, há proteção de trajetórias e prevenção de violações.

Os dados são cristalinos:

  • Segundo o IBGE (PNAD Contínua, 2022), as mulheres dedicam, em média, 21,3 horas semanais aos afazeres domésticos e/ou cuidado de pessoas, contra 11,7 horas dos homens — sobrecarga que ajuda a explicar a desigualdade salarial e a menor presença feminina em cargos de liderança.
  • Na educação infantil (0–3 anos), seguimos aquém da meta do PNE. Levantamentos recentes indicam cobertura próxima de 40%–41%, com milhões de crianças ainda fora da creche, e forte desigualdade por renda. Análises mostram que, entre crianças de 2–3 anos, 64,7% das que estão na escola têm mães empregadas, contra 42,8% entre as que estão fora — evidência direta do impacto da creche na ocupação feminina (FGV/IBRE, 2024).
  • No SUS, fortalecer a Atenção Primária salva vidas e evita gastos hospitalares. Série histórica do Ministério da Saúde aponta queda de cerca de 45% nas internações por Condições Sensíveis à Atenção Primária (ICSAP) entre 2001 e 2016 (de 120 para 66 por 10 mil hab.), resultado coerente com a expansão da Estratégia Saúde da Família (BVS/MS). Estudos também relacionam maior cobertura da ESF a reduções relevantes nas hospitalizações por crônicas e na mortalidade infantil.

No Brasil, o cuidado é majoritariamente feminino, negro e, muitas vezes, não remunerado. Ignorar esse dado é institucionalizar oportunidades capadas. Quanto às pessoas com deficiência, a lição é óbvia: sem acessibilidade universal, tecnologias assistivas, apoio à vida independente e reabilitação, não há igualdade material. O capacitismo se alimenta do improviso e da ausência do Estado, empurrando o cuidado às famílias — quase sempre às mulheres. O caminho civilizatório é o oposto: cuidado como direito exigível, com padrões, monitoramento e financiamento.

Não se trata de “gastar mais” indiscriminadamente, mas de gastar melhor, conforme a Constituição. É preciso um Fundo Nacional do Cuidado com regras claras, vinculação federativa e metas verificáveis; reordenar renúncias ineficientes; priorizar programas com evidência de impacto; e firmar parcerias público-comunitárias com controle social. É responsabilidade fiscal solidária: orçamento como escolha moral antes de ser planilha.

Frise-se: cuidado não é adereço de governo, é estrutura de Estado. Quando ele existe, o voto ganha espessura cívica, a escola vira horizonte, a saúde previne tragédias, o trabalho se torna possível, a cidade se abre para todos. Em outras palavras, o cuidado materializa Direitos Humanos e transforma igualdade formal em igualdade real.

A Política Nacional do Cuidado é a costura fina que falta ao nosso tecido social. Organiza o que está disperso, dá previsibilidade ao incerto e devolve tempo — o mais democrático dos ativos — a quem dele foi privado. Com ela, a Constituição Cidadã sai do papel: fortalecemos o Estado de Bem-Estar Social, aprofundamos os Direitos Humanos e abrimos portas para que cada pessoa viva com dignidade e autonomia.

André Naves
Defensor Público Federal. Especialista em Direitos Humanos e Sociais e Inclusão Social. Comendador Cultural. Escritor e Professor.
www.andrenaves.com | Instagram: @andrenaves.def

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