O Centro de São Paulo e a Diversidade
Há um ativo pelas ruas do centro de São Paulo — curiosamente, num entendimento mais desatento, esse ativo mais parece uma desvantagem. É que a desigualdade social brasileira se manifesta ali, cruenta e trágica: a miséria convive lado a lado com empreendimentos vibrantes e maravilhosos. Pessoas em situação de rua dividem espaço com galerias de arte, ateliês criadores, iniciativas culturais que pulsam com vida e propósito. Lojas de luxo e cortiços. Restaurantes sofisticados e vendedores ambulantes. Escritórios corporativos e ocupações de sem-teto.
Essa justaposição brutal da riqueza e da pobreza, essa exposição crua das odiosas fraturas sociais brasileiras, é frequentemente lida como um fracasso urbano, como um sinal de que algo deu errado. Políticos falam em “revitalização”. Empresários sonham com “limpeza”. Urbanistas desenham projetos de “requalificação”. Todos parecem concordar: o centro precisa ser diferente. Precisa ser mais limpo, mais ordenado, mais seguro — e, implicitamente, menos pobre, menos diverso, menos “caótico”.
É crucial sublinhar que não se trata aqui de romantizar a miséria ou ignorar a urgência de superá-la. É lógico que a desigualdade social brasileira deve ser combatida incessantemente, pela eliminação da miséria, pelo fortalecimento da proteção social e pela ação concertada do poder público em parceria com o setor privado. O objetivo final é a dignidade humana para todos.
No entanto, o que se argumenta é que, mesmo no contexto dessas realidades desafiadoras, a diversidade inerente ao centro possui o condão de gerar ideias criativas e potentes, um catalisador que não deve ser descartado. É precisamente nessa confluência — nessa pluralidade radical, nessa exposição sem filtros das contradições sociais — que reside a verdadeira vantagem competitiva do centro paulista. Uma vantagem que, inocentemente, muitos querem destruir em nome da “modernização”.
Não é coincidência que tantas iniciativas artísticas, tantos projetos criativos, tantos movimentos culturais inovadores floresçam nas ruas do centro. A criatividade não brota em ambientes homogêneos e assépticos. Ela não prospera em condomínios fechados, em shoppings climatizados, em espaços corporativos padronizados. Ela aflora — e isso é comprovado tanto pela história da arte quanto pela neurociência contemporânea — onde há encontro genuíno, onde há diferença radical, onde há a possibilidade real de diálogo entre mundos distintos.
A diversidade é a pedra de toque da inovação. Quando pessoas de origens, experiências, classes sociais e perspectivas diferentes compartilham um mesmo espaço — não virtualmente, mas fisicamente, corporalmente, nas ruas, nos bares, nos espaços públicos — algo extraordinário acontece. Novas ideias emergem do atrito. Novas soluções são vislumbradas a partir da colisão de visões de mundo. Novas formas de estar, de criar, de empreender ganham corpo. Como disse Victor Hugo, “Do conflito entre as pedras é que surgem as faíscas que fazem nascer a Luz!”
Pense nos grandes centros criativos do mundo: Nova York, Londres, Berlim, Barcelona. O que todos eles compartilham? Não é homogeneidade. É exatamente o oposto: são cidades que abraçam — às vezes relutantemente, mas abraçam — a diversidade radical. São cidades onde o rico e o pobre, o imigrante e o nativo, o artista e o comerciante, o jovem e o idoso, compartilham as mesmas ruas. E é dessa fricção, dessa pluralidade, que emerge a criatividade que as torna referência global.
O centro de São Paulo possui essa característica em abundância. Talvez em excesso, diriam alguns. Mas é precisamente esse “excesso” que o torna um laboratório vivo de criatividade.
Há, porém, uma tendência recorrente nas cidades brasileiras — uma tendência que poderia ser chamada de “complexo de vira-lata urbano”. É a ideia de que para ser moderno, para ser desenvolvido, para ser “de primeiro mundo”, é preciso eliminar aquilo que nos diferencia, aquilo que nos marca como brasileiros, aquilo que nos marca como desiguais. Sabe o comércio popular? Os camelôs? A barraquinha de café e bolo ou de milho no potinho? Os botecos “pé sujo”?
Compreendo — e compartilho profundamente — a aspiração legítima de ver o centro mais limpo, mais iluminado, com calçadas acessíveis, com espaços públicos bem cuidados e seguros. Essa é uma responsabilidade que compete à zeladoria pública, aos governos municipal e estadual, e aos próprios empreendimentos privados, que podem se unir em iniciativas coletivas de limpeza, iluminação, manutenção da segurança e preservação da beleza urbana.
Mas aqui está o ponto crítico — e é aqui que a reflexão se torna verdadeiramente importante: não podemos confundir o cuidado com o espaço público com a exclusão das pessoas que o habitam. Há uma tentação — frequentemente disfarçada de “revitalização”, de “modernização”, de “desenvolvimento” — de higienizar o centro removendo justamente aqueles que o tornam diverso. Remover as pessoas em situação de rua. Remover os vendedores ambulantes. Remover os pobres. Remover tudo aquilo que “desagrada” ao olhar.
E isso seria não apenas um erro ético — embora seja — mas um erro estratégico profundo. Um erro que destruiria exatamente aquilo que torna o centro potente.
Porque — e isso é fundamental para compreender a verdadeira vantagem do centro — a presença de pessoas diferentes, diversas, plurais, não apenas enriquece culturalmente o espaço. Ela potencializa a criatividade. Ela amplifica as atividades econômicas inovadoras. Ela gera, concretamente, mais valor econômico.
Há uma falsa dicotomia que permeia o debate público brasileiro: a ideia de que ou você cuida da “ordem” e da “limpeza”, ou você abraça a “desordem” e a “sujeira”. Ou você é “higienista” ou você é “permissivo”. Essa dicotomia é falsa e prejudicial. A verdade é mais sofisticada: você pode — e deve — cuidar meticulosamente do espaço público, investir em limpeza, iluminação, segurança, acessibilidade, sem excluir as pessoas. Essas não são escolhas mutuamente excludentes. São escolhas que devem caminhar juntas.
Tornar o centro mais acessível às pessoas — todas as pessoas, inclusive as mais pobres, as mais marginalizadas — é torná-lo mais potente criativamente. É tornar as atividades econômicas ali presentes mais inovadoras, mais dinâmicas, mais capazes de gerar valor, emprego e oportunidade. É criar um ambiente onde a criatividade pode florescer porque há espaço para todos.
Considere a economia criativa paulistana. Onde ela prospera? Não é em condomínios fechados. Não é em shopping centers. É nas ruas do centro. É em espaços onde há encontro, onde há diversidade, onde há a possibilidade de que um artista encontre um produtor, que um empreendedor encontre um colaborador, que uma ideia encontre uma oportunidade.
A pesquisa econômica contemporânea — de autores como Richard Florida, que estudou a “classe criativa”, até trabalhos mais recentes sobre inovação urbana — demonstra consistentemente que cidades diversas prosperam economicamente. Não apesar da diversidade. Por causa da diversidade.
Por quê? Porque a inovação não é um processo solitário. É um processo coletivo, que emerge do encontro entre diferentes perspectivas, diferentes experiências, diferentes formas de ver o mundo. Quando você reúne pessoas de origens e backgrounds distintos, você cria as condições para que ideias novas surjam. E ideias novas são a base da economia do século XXI.
O centro de São Paulo, com toda sua “desordem”, com toda sua “caótica” pluralidade, é um gerador natural de ideias. É um espaço onde a criatividade não é um luxo, mas uma necessidade. É um espaço onde a inovação não é uma escolha, mas uma resposta à realidade complexa que ali se desenrola.
Remover a diversidade do centro seria como remover o solo fértil de um jardim e esperar que as flores continuem florescendo. Seria destruir a própria fonte da criatividade que o torna especial.
É importante nomear o que está realmente em jogo nessas discussões sobre “revitalização” do centro. Frequentemente, o que se chama de “revitalização” é, na verdade, gentrificação — um processo pelo qual um bairro é “melhorado” (limpeza, iluminação, segurança) de forma que se torna atrativo para pessoas de maior poder aquisitivo, levando ao aumento dos aluguéis e à expulsão gradual dos pobres. Mas seus efeitos são devastadores. O bairro pode, de fato, ficar “mais bonito” para alguns padrões estéticos, mas perde sua alma e sua identidade cultural, diluindo o tecido social que o caracterizava. Fica mais seguro para uma parcela da população, mas menos acessível e habitável para muitos, com a perda de comércio popular e serviços de baixo custo. Torna-se mais rentável para os proprietários e investidores, mas progressivamente menos habitável para os pobres, para os pequenos comerciantes e para as comunidades tradicionais, que são deslocadas, perdendo suas redes de solidariedade e seu senso de pertencimento.
E aqui está o ponto fulcral: ao expulsar os diferentes, ao eliminar a diversidade, você elimina exatamente aquilo que tornava o centro criativo, inovador, especial. Você transforma um espaço vivo em um espaço morto — um espaço de consumo padronizado, e não de criação genuína.
O que proponho é um entendimento diferente. Uma visão que reconhece que é possível — e necessário — cuidar do espaço público sem excluir as pessoas. Que é possível ter limpeza e diversidade. Que é possível ter segurança e inclusão. Que é possível ter beleza urbana e justiça social.
Isso requer investimento público real. Requer que a prefeitura invista em limpeza, iluminação, manutenção das calçadas, segurança. Requer que os empreendimentos privados se unam em iniciativas coletivas de cuidado com o espaço. Requer que haja políticas de assistência social para as pessoas em situação de rua, não para removê-las, mas para integrá-las, para oferecer-lhes oportunidades reais de dignidade e autonomia.
Requer, acima de tudo, uma mudança de mentalidade. Uma compreensão de que a diversidade não é um problema a ser resolvido, mas um ativo a ser cultivado. Uma compreensão de que o centro é potente exatamente porque é diverso, e que qualquer “revitalização” que elimine essa diversidade é, na verdade, uma destruição.
O centro de São Paulo é, por excelência, a confluência de pessoas diversas. É o lugar onde o Brasil se vê refletido em sua totalidade — com suas contradições, suas desigualdades, suas possibilidades. Ricos e pobres. Artistas e comerciantes. Migrantes e nascidos na cidade. Pessoas com deficiência e sem deficiência. Todos compartilhando as mesmas ruas, os mesmos espaços, as mesmas possibilidades.
Essa confluência é rara. É valiosa. É, em muitos sentidos, única.
Ao contrário de uma desvantagem, isso deveria ser percebido — e celebrado — como uma vantagem incomparável. Uma vantagem que outras cidades pagariam caro para possuir. Uma vantagem que, se bem cultivada, pode fazer de São Paulo não apenas uma metrópole economicamente potente, mas um modelo de cidade inclusiva, criativa e verdadeiramente desenvolvida.
O desafio que se coloca diante de nós não é eliminar a diversidade do centro em nome da “limpeza” ou da “ordem”. O desafio é muito mais sofisticado e muito mais importante: é cuidar do espaço público sem excluir as pessoas. É zelar pela beleza urbana sem negar a dignidade humana. É reconhecer que a verdadeira força do centro reside exatamente naquilo que alguns querem remover.
É, em última análise, um desafio de liderança. De coragem. De visão. De compreensão de que o desenvolvimento verdadeiro não é aquele que exclui, mas aquele que inclui. Não é aquele que homogeneíza, mas aquele que celebra a diferença. Não é aquele que remove os pobres, mas aquele que cria oportunidades para que todos — todos — possam prosperar.
Quando compreendermos isso — quando percebermos que inclusão e inovação caminham juntas, que diversidade e criatividade são inseparáveis, que a presença do pobre não diminui o centro, mas o potencializa — o centro de São Paulo não apenas será mais justo. Será mais criativo, mais dinâmico, mais desenvolvido, mais potente economicamente. Será, enfim, verdadeiramente moderno.
Porque modernidade não é limpeza sem alma. Modernidade é inclusão com excelência. É diversidade com dignidade. É criatividade com justiça.
O centro de São Paulo já possui tudo isso. Agora, precisamos ter a sabedoria de preservar, melhorar e cuidar!
André Naves
Defensor Público Federal. Especialista em Direitos Humanos e Sociais, Inclusão Social – FDUSP. Mestre em Economia Política – PUC/SP. Cientista Político – Hillsdale College. Doutor em Economia – Princeton University. Comendador Cultural. Escritor e Professor.
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