Dia: 29 de outubro de 2025

O Brasil Sangra

Brasil: um país em que a Esperança é o último refúgio e nunca morre. Apesar disso, a fé na justiça se desmonta cotidianamente em um violento jogo. A vala fria da desesperança sempre nos aguarda, como um abismo que desconcerta e atrai.

Os eventos que mancharam de sangue as comunidades do Rio de Janeiro, deixando um rastro de mortos que choca e entorpece a alma, não são apenas estatísticas frias de um confronto. São chagas de uma falha profunda, sistêmica, que se repete dolorosamente em nosso tecido social. E o mais cruel é perceber que, em meio a essa tragédia, muitos, com a melhor das intenções, acabam por celebrar a barbárie.

Há uma falácia perigosa que se alastra, como erva daninha no terreno fértil da indignação. A ilusão de que operações policiais desastradas, mal planejadas e focadas unicamente em “subir o morro” para um embate direto, resolverão o intrincado problema da criminalidade. É a crença ingênua, porém devastadora, de que a violência estatal, exercida de forma bruta e desmedida, é a resposta definitiva.

Esse é o ponto onde a boa intenção se desvia do caminho, pavimentando a estrada para o inferno da chacina, do extermínio, da injustiça. As ruas clamam por segurança, os corações clamam por paz, mas a forma como buscamos essa paz define se a encontraremos ou se afundaremos ainda mais no caos e na lama sangrenta.

Não se trata de negar a necessidade da presença do Estado, nem de romantizar a criminalidade. Longe disso. O Estado precisa e deve estar presente em cada recanto do território brasileiro, especialmente nas comunidades mais excluídas, nas periferias esquecidas, nos bolsões de vulnerabilidade. A questão fundamental é: como o Estado chega? Quando a única face que se mostra é a do fuzil, a do caveirão, a da bala perdida e da vida massacrada, o que se constrói não é segurança, mas sim um ciclo vicioso de dor, vingança e deslegitimação de qualquer autoridade. O Estado, ao chegar apenas com a violência, fecha os olhos para o problema maior, para a raiz do mal que aniquila a nossa sociedade.

É preciso ter a coragem de olhar para o espelho da realidade e questionar: onde está, de fato, a criminalidade que verdadeiramente desestabiliza o país, que corrompe as instituições e que tece a teia da impunidade? Não, ela não está predominantemente nas vielas estreitas das favelas, nos barracos humildes onde a vida pulsa com sacrifício e resistência. As lideranças do crime, do crime organizado em sua essência mais perversa, não se escondem nos becos da miséria, nas biqueiras sujas. Elas habitam os bairros nobres, os grandes centros financeiros das cidades, os suntuosos palácios políticos, as altas esferas do poder econômico.

Os exemplos são eloquentes e se erguem como monumentos à nossa cegueira coletiva. Lembremos da maior operação de apreensão de fuzis já realizada no Rio de Janeiro. Aconteceu onde? No asfalto, no Condomínio Vivendas da Barra. Foi uma operação de inteligência, meticulosamente planejada, que resultou na apreensão de um arsenal sem que uma única vida fosse perdida, sem que um único tiro fosse disparado. Contrastemos isso com a brutalidade das chacinas nas comunidades, onde dezenas de vidas são perdidas em embates sangrentos, gerando luto e revolta, mas raramente desmantelando as verdadeiras estruturas do crime.

Ou ainda, os quarenta bilhões de reais das organizações criminosas que foram descobertos e bloqueados em operações focadas em seguir o dinheiro, em desmantelar a lavagem e a corrupção em alta escala. Não na favela, mas nos centros financeiros, nos esconderijos de luxo que abrigam os verdadeiros operadores do crime.

Percebam que uma série de leis e políticas são, por vezes, elaboradas não para combater o crime, mas para acobertá-lo, para expandir o sentimento de impunidade, para proteger interesses escusos. É nesse emaranhado de interesses que a verdadeira batalha contra o crime deve ser travada, com inteligência, estratégia e um compromisso inabalável com a ética e a legalidade.

A matemática da barbárie é cruel e implacável. Alguém realmente acredita que a criminalidade será enfrentada, de forma eficaz e duradoura, com extermínios em massa? A tragédia dos cento e vinte e cinco que, miseravelmente, faleceram ontem, já tem seu triste epílogo. Essas vidas, por mais que lamentemos sua perda, já foram substituídas pelas engrenagens frias e implacáveis do tráfico de drogas e do crime organizado. A lógica perversa do crime não para. Ela se realimenta da miséria, da exclusão, da ausência do Estado. Para cada vida destruída na favela, há outras cem esperando a oportunidade para serem cooptadas por um sistema que se aproveita da desesperança.

O verdadeiro combate à criminalidade passa por desatar esses complexos nós. É preciso seguir o dinheiro, as rotas do armamento, as redes de corrupção que permitem a existência e a expansão dessas organizações criminosas. É preciso uma inteligência de Estado robusta, despolitizada, apartidária, que trabalhe em conjunto, articulando as forças de segurança de todos os entes federativos — Estados e governo federal — em uma estratégia coesa e de longo prazo.

Mas, acima de tudo, o Estado precisa chegar nas comunidades com a sua face mais humana, mais essencial: a da Cidadania. É lá, onde a ausência do Estado é mais sentida, que ele precisa se manifestar com serviços públicos de qualidade. Educação que abre portas para o futuro, saúde que cuida da vida, saneamento básico que garante dignidade, coleta de lixo e zeladoria que demonstram respeito, cultura que enriquece a alma, oportunidades de trabalho que resgatam a esperança.

É nesse solo fértil de direitos que se planta a verdadeira segurança. É lá que se constrói uma barreira intransponível contra a coação do crime.

Os Direitos Humanos não são um obstáculo ao combate à criminalidade; são a bússola que nos impede de nos perdermos na escuridão da violência. Direitos Humanos de verdade significam que a vida importa, que a justiça importa, que a dignidade de cada indivíduo importa, independentemente de sua origem, cor ou condição social. Significa que o Estado tem o dever de proteger seus cidadãos, e não de exterminá-los em operações desastradas.

É tempo de olharmos para onde o crime realmente está e levarmos, sim, condições de vida para a favela, para as comunidades. Condições de vida, não condições de morte. Condições de florescer, não de definhar. A criminalidade será enfrentada não com extermínio, mas com a construção incansável de uma sociedade mais justa, mais igualitária e, sobretudo, mais humana. O grito que ecoa das comunidades não é um pedido de trégua, mas um clamor por uma vida digna, por um Estado presente, protetor e que garanta a todos o direito fundamental de existir.

André Naves
Defensor Público Federal. Especialista em Direitos Humanos e Sociais, Inclusão Social – FDUSP. Mestre em Economia Política – PUC/SP. Cientista Político – Hillsdale College. Doutor em Economia – Princeton University. Comendador Cultural. Escritor e Professor.
www.andrenaves.com
Instagram: @andrenaves.def

Meu Amigo Golem

Hoje acordei… Dia chuvoso, sabe? É o cinza que desperta o ouro das saudades… Uma lembrança, será que não seria fantástica? Nunca saberemos…

Eu, brincando no meu quartinho da bagunça, lá em Jacareí, encontrei um tipo de bilhete, numa linguagem que eu não entendia. Parecia carcomido pelas traças, cheio de poeira, teia de aranha. Acho que foi isso que me pegou.

É que eu tinha acabado de ver o filme do Simbad! Lá pelas tantas dele, tinha se encontrado com um alquimista, feiticeiro. Era minha brincadeira favorita: alquimista!

Sabe, me imaginar de túnica escura, chapéu pontudo, com tubos de ensaio cheios de líquidos coloridos e fumegantes, fazendo as mais diferentes experiências… Aquilo era quase doce de leite com paçoca!

Um pergaminho da antiguidade todo indecifrável! Embaixo das letras indecifráveis, um desenho: um gigante com cara de poucos amigos e um alquimista sábio – ele tinha roupão escuro de feiticeiro, mas o chapéu era diferente… Devia ser de uma outra ordem de magia…

Logo embaixo 3 palavras enigmáticas – GOLEM – PRAGA – LOEW. Talvez é a cura pr´uma doença, pensei… Será que a doença é Golem? E Lowel? O médico? O feiticeiro? O sábio? O que seria? Não pensei duas vezes… Tomei o tesouro na mão, e meio que em pose de quem vai lançar feitiço falei umas palavras aleatórias: ABRACADABRA!

 De repente, igualzinho rodamoinho de Saci, tudo começou a rodar, a ventar… E eu ali. Sem varinha, sem chapéu, sem nada… E a calma reinou. E quando tudo assentou era o gigante ali. Ele e o alquimista. Bravo. Ralhou comigo. Eu não entendia uma palavra, mas a reclamação não se perde na tradução… Queria voltar pro desenho, parece…

Sorri pro gigante. Ele nem se deu conta. Acho que é tímido, feito eu…

Mostrei meus brinquedos pr´eles. Pros dois. O sábio olhou tudo, examinou direitinho. Parecia estar buscando uma pista, uma saída, um amuleto. Um entendimento!  O gigante, nada. Parecia que nem era com ele. Daí olhei bem pros dois. Quem não tem palavra, tem olhar… E sorri.

Sentei. Meio desconfiado, o mágico sentou. Ele resmungou e o gigante também. Daí pedi pra ver aquele chapéu. Ele sorriu e deu um tapa na minha mão. Devia ser coisa séria. Pela primeira vez o gigante me notou.

Sabe o mais legal? Vocês não vão acreditar! A gente pegou uns brinquedos, uns bonequinhos GI Joe que eu tinha, e começou a brincar. Cada um do seu jeito. Eu, com minhas palavras. O sábio, com as dele. O gigante, sem nenhuma… Foi brincadeira pra mais de metro que a gente fez junto.

Depois, outra ventania… Acho que o saci também queria brincar, mas quando tudo se acalmou eles não tavam mais lá…

Só sei que, pra mim, ficou um amigo feito de silêncio e barro, um sábio curioso, e um quarto que, por um momento, virou passagem.

E “Loew”? O que será “Loew”? Nem sei pronunciar isso… Talvez, quem dá vida ao barro. Talvez quem acende o que estava apagado. Ou só um segredo que o chapéu guardou e que o gigante preferiu não contar.

O que será Loew? … 😉

André Naves
Defensor Público Federal. Especialista em Direitos Humanos e Sociais e Inclusão Social. Comendador Cultural. Escritor e Professor.
www.andrenaves.com | Instagram: @andrenaves.def

O Centro de São Paulo e a Diversidade

Há um ativo pelas ruas do centro de São Paulo — curiosamente, num entendimento mais desatento, esse ativo mais parece uma desvantagem. É que a desigualdade social brasileira se manifesta ali, cruenta e trágica: a miséria convive lado a lado com empreendimentos vibrantes e maravilhosos. Pessoas em situação de rua dividem espaço com galerias de arte, ateliês criadores, iniciativas culturais que pulsam com vida e propósito. Lojas de luxo e cortiços. Restaurantes sofisticados e vendedores ambulantes. Escritórios corporativos e ocupações de sem-teto.

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