Após as trevas de um passado autoritário, o Brasil renasceu em 1988 com uma promessa gravada em sua nova Constituição: a de ser um Estado Democrático de Direito. Este pilar, fincado no artigo 1º da nossa Carta Magna, define que a nação brasileira é, por essência, uma democracia submetida ao império da Lei e da Justiça.
Pensar o Brasil fora desse espectro é como tentar misturar água e óleo; o autoritarismo é, e sempre será, incompatível com o nosso projeto de país.
Mas o que, de fato, significa viver em uma Democracia? Engana-se quem a resume à simples vontade da maioria. A verdadeira Democracia floresce quando a vontade da maioria se curva para respeitar, proteger e promover a dignidade dos grupos minorizados. Sua finalidade última é a concretização e o aprofundamento dos Direitos Humanos. Sem esse compromisso, a Democracia é apenas uma palavra vazia.
Se sem Democracia não há Brasil!
Sem Direitos Humanos não há Democracia!
E o que são eles? São a materialização dos cinco direitos fundamentais que garantem nossa plenitude: Vida, não como mera sobrevivência, mas com saúde, educação, trabalho digno e lazer; Liberdade, não como um cheque em branco, mas como um ato de expressão atrelado à responsabilidade; Igualdade, como a base para que todos possam se desenvolver; Propriedade, não apenas de bens, mas de nossas crenças, saberes e do nosso próprio corpo; e Segurança, que vai muito além do enfrentamento ao crime, alcançando a certeza de ter o que comer, onde morar e um clima que nos permita existir.
Quando incluímos dignamente cada cidadão nesse pacto, a Democracia se fortalece num ciclo virtuoso. É que cada ser humano é único, e possui um cabedal de aptidões e limitações. Dessa maneira, coletivamente, os pontos fortes de uns complementam os pontos fracos dos outros, e vice-versa. Ou seja, sociedades mais diversas e plurais são mais dinâmicas, criativas e prósperas.
No entanto, a realidade do Brasil revela uma ferida aberta. Somos um país que, historicamente, exclui, deixa para trás, as individualidades diferentes: pessoas minorizadas por sua etnia, orientação sexual, origem social… Não por falta de leis — nossa legislação para pessoas com deficiência (PCDs), por exemplo, é uma das mais avançadas do mundo —, mas por uma ausência crônica de políticas públicas estruturantes e por uma cultura adoecida pelo capacitismo. Por isso a necessidade de os diferentes indivíduos darem as mãos coletivamente para pressionarem por políticas públicas que tirem as leis do papel e melhorem a realidade nacional.
Os dados recém-divulgados do Censo 2022 são um soco no estômago da nossa consciência nacional. O IBGE revela que 14,4 milhões de brasileiros com dois anos ou mais vivem com alguma deficiência, o que representa 7,3% da população. Pela primeira vez, o Censo também nos deu um número oficial de pessoas com Transtorno do Espectro Autista (TEA): mais de 2,4 milhões de cidadãos. São números que gritam, mas que o Estado parece ouvir com um silêncio ensurdecedor.
Essa exclusão se materializa de forma cruel na educação. Entre as pessoas com deficiência com 25 anos ou mais, impressionantes 63,1% não concluíram sequer o ensino fundamental. Apenas 7,4% alcançaram um diploma de ensino superior. Essa barreira educacional é um muro que os impede de chegar ao mercado de trabalho. A Lei de Cotas, embora meritória, patina. Falta fiscalização, falta sensibilidade e, acima de tudo, falta uma mudança de mentalidade nas empresas e um Estado que invista em formação inclusiva.
Quando falamos de inclusão, o buraco é mais embaixo. Apenas vergonhosos 15,2% das ruas do país possuem rampas. Mas as barreiras mais cruéis são as invisíveis: o capacitismo estrutural que nos faz duvidar da capacidade alheia; a burocracia de um laudo médico que se torna uma sentença para o exercício de um direito; o transporte público que aprisiona em vez de libertar; a ausência de representatividade política.
Felizmente, há luzes no fim do túnel. No Congresso Nacional, duas iniciativas merecem nossa atenção e apoio:
1. O Projeto de Lei 739/2024, já aprovado no Senado, que permite o uso do Cadastro-Inclusão como prova de deficiência, desburocratizando o acesso a direitos e validando a avaliação biopsicossocial prevista no Estatuto da Pessoa com Deficiência.
- Na Câmara, o PL 2630/2021, que cria a Política Nacional de Proteção dos Direitos da Pessoa com TDAH, um passo crucial para garantir ações integradas na saúde e na educação.
Esses projetos podem se tornar marcos civilizatórios, mas não são a solução final. É urgente regulamentar a avaliação biopsicossocial em todo o país, garantir verbas para políticas inclusivas e, acima de tudo, consolidar o protagonismo das pessoas com deficiência na construção das soluções que lhes dizem respeito, como clamou a 5ª Conferência Nacional dos Direitos da Pessoa com Deficiência.
A inclusão não é um ato de caridade. É uma questão de justiça social, de desenvolvimento humano e, em última análise, de sobrevivência democrática. E para que ela saia do papel, o Brasil precisa de menos discursos e mais coragem institucional, projeto político e um compromisso ético inabalável com a dignidade de cada um de seus filhos e filhas.
André Naves
Defensor Público Federal. Especialista em Direitos Humanos e Sociais, Inclusão Social – FDUSP. Mestre em Economia Política – PUC/SP. Cientista Político – Hillsdale College. Doutor em Economia – Princeton University. Comendador Cultural. Escritor e Professor.
Conselheiro do Chaverim. Embaixador do Instituto FEFIG. Amigo da Turma do Jiló.
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